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O significado da advocacia Pro Bono
Advocacia para o bem. Mais do que uma tarefa, é uma missão dirigida ao exercício da advocacia solidária, voluntária e gratuita destinada a entidades sem fins lucrativos ou comprovadamente sem recursos, usualmente denominadas de associativas, de assistência social e cultural, filantrópicas, e de outras, integrantes do chamado terceiro setor.
O exercício gratuito da Advocacia é prática usual entre nós, advogados. Entretanto, este papel definitivamente não está em sintonia com as necessidades e anseios da sociedade contemporânea.
Penso que nós advogados não estamos exercendo tal papel do modo como a sociedade espera. Não estamos fazendo nenhum esforço significativo neste sentido. Carecemos de maior solidariedade e sequer percebemos a fragilidade de nossa modesta contribuição.
Precisamos resgatar a formação humanista do advogado e aperfeiçoar o nosso compromisso solene, assumido perante a Ordem dos Advogados do Brasil, de defender a justiça social (art. 20, Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia).
Temos um compromisso inadiável com a solidariedade, com a cidadania e com o voluntariado. De igual, com o Poder Público, na árdua tarefa que cabe a cada um de nós e a todos os brasileiros, de construirmos um país do qual possamos nos orgulhar para entregá-lo, mais justo, às gerações futuras.
Não obstante, merecem registro os esforços do Conselho Federal da OAB e de muitas de suas Seccionais, ao longo de suas histórias, no incentivo de criação e fomento de comissões que tratam dos temas cidadania, ação social e afins e, particularmente, neste momento, com os estudos para a regulamentação nacional da advocacia pro bono.
AS AÇÕES EM PRÁTICA
A história recente registra a criação de entidades (a exemplo do Instituto Pro Bono, do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, do Instituto de Acesso à Justiça, da Fundação 18 de Março, entre tantas outras) que, apoiadas na Lei federal nº 9.790/99, fomentam a promoção de direitos estabelecidos, a construção de novos direitos e a assessoria jurídica suplementar (art. 3º, inciso X) e estabelecem parcerias com renomadas bancas de Advocacia do País, sem que isto possa significar violação das atividades privativas do advogado, previstas no art. 1º do Estatuto da Advocacia.
O Conselho Nacional de Justiça aprovou Resolução que disciplina os procedimentos sobre o cadastramento e os serviços de assistência judiciária gratuita e cria o cadastro de advogados voluntários. Mutirões legais e ações nacionais de cidadania multiplicam-se pelo País. Eis aí uma nova dimensão social da prática do Direito.
Também merecem destaque a conhecida e respeitada tradição norte-americana na prática da advocacia pro bono e os esforços de toda a comunidade jurídica das Américas, na forma da Declaração Pro Bono para as Américas, acontecimento ocorrido em 2007, em São Paulo, e que contou com a participação de renomados advogados e juristas, entre eles, o então Presidente da OAB-SP, hoje ilustre Conselheiro Federal e relator do processo que trata do tema no Conselho Federal, Luiz Flávio Borges D´Urso.
O ADVOGADO PRO BONO E O MARCO REGULATÓRIO DA ATIVIDADE
A Constituição da República atribui a nós, advogados, um ofício de singular nobreza ao consagrá-lo como serviço público com função social e, uma vez incumbidos desta verdadeira missão, penso que devemos melhor colaborar para o cumprimento dos princípios constitucionais do acesso à Justiça e da solidariedade, que guardam nobre objetivo fundamental da República, qual seja, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (arts. 5º, inciso XXXV; e 3º, inciso I).
O Estatuto da Advocacia renova o fiel e rigoroso cumprimento da função social da Advocacia (art. 2º) e o Código de Ética e Disciplina, em sua Exposição de Motivos, apresenta ao advogado, como imperativo de sua conduta, a finalidade social de seu trabalho.
Ainda que protegidos pelos princípios anunciados, os advogados pro bono têm, diante de si, os óbices previstos nos arts. 39, 40 e 41 do Código de Ética e de Disciplina, os quais, de certa forma, impedem o advogado de prestar serviços advocatícios sem remuneração e advertem que tal prática implica captação de clientes ou causa.
A NECESSÁRIA REGULAMENTAÇÃO NACIONAL DA ADVOCACIA PRO BONO
Minha convicção é a de que tanto o texto do Estatuto quanto o do Código de Ética e Disciplina, se não proíbem expressamente a atividade pro bono, deixam fundada dúvida e receio de sua prática segura.
As decisões majoritárias a respeito do tema, entre os Tribunais de Ética e Disciplina da OAB, são contrárias à atividade pro bono e têm aplicado sanções aos advogados praticantes.
De fato, e como sabido, este ambiente normativo e de julgamento não inspira confiança e segurança para o exercício da prática.
Nesse contexto, vale reproduzir excerto do Editorial do Jornal O Estado de S. Paulo, de 25 de setembro de 2001, intitulado “A desconfiança corporativa dos advogados”:
Qualquer médico que resolva, por idealismo, dedicar algumas horas de trabalho –semanais, mensais ou por período que seja – em favor de doentes necessitados de algum atendimento e com poucos recursos para tratar-se, com certeza terá plena liberdade para fazê-lo e será bem-vindo onde o fizer. Qualquer dentista que, por um sentimento de solidariedade, em relação aos sofrimentos do próximo, resolva dedicar parte de seu tempo útil ao cuidado dos dentes de pessoas carentes, certamente encontrará caminho aberto para a sua prática benfazeja. Qualquer engenheiro ou arquiteto que decida dar sua contribuição profissional, sem nada receber, para a construção de moradias populares, terá total liberdade para esta ação. Qualquer advogado que resolva ajudar, gratuitamente, pessoas necessitadas de assistência jurídica, correrá o risco de sofrer processo e ser condenado pelo Tribunal de Ética de sua entidade de representação profissional, a OAB. Quer dizer, ao contrário do que ocorre com as demais profissões e atividades conhecidas, no Brasil, o advogado que pratica (ou comete?) o trabalho voluntário é considerado antiético. A que se deve tamanho despropósito? Por que se nega ao profissional do Direito a possibilidade de extravasar seu sentimento de responsabilidade social? Por acaso o motivo desse tolhimento – à liberdade de ajudar o próximo – seria o receio de que os advogados se utilizassem do disfarce do trabalho voluntário e gratuito para surrupiar clientes de seus colegas? Se esse fosse o motivo, comprovado estaria que o profissional do Direito é o que nutre o pior conceito ético de seus colegas – o que assemelharia a categoria a um saco de gatos.
Nesse mesmo sentido é o entendimento do Advogado Miguel Alfredo Malufe Neto:
A prestação de serviços jurídicos com finalidade comunitária e social deixe de ser uma exceção e caracterize uma atividade que, devidamente regulamentada, permita o seu livre exercício, segundo o critério de cada profissional, mas perfeitamente balizada para que não se materializem os temores consignados no Código de Ética, nem por outro lado, se transforme em uma vedação que prejudica o conceito da própria classe, atribuindo-lhe reserva corporativa, ou sirva de trampolim, para que de forma inescrupulosa, possam ser buscados objetivos escuros.1 (Grifo nosso)
Pergunto: O que fazer então? Negar a advocacia pro bono e deixar sua prática sob a ameaça de processo disciplinar perante a OAB ou dar-lhe um regramento?
Não tenho dúvida quanto à melhor resposta: O regramento entregará ao advogado – socialmente responsável e agente de promoção humana – regras que assegurem a prática.
Assim, imagine-se a hipótese de serviços da advocacia pro bono prestados para uma Associação de proteção a pessoas com determinada deficiência. O advogado pro bono poderá elaborar seus estatutos, prestar consultoria e assessoria em questões de isenções fiscais e previdenciárias, em todas as esferas de governo, em questões de financiamentos e doações, e outras tantas demandas que necessitam de aconselhamento jurídico.
Quem seria o advogado que não desejaria dar sua contribuição para uma entidade desta natureza? Não imagino que nossa formação humanista e profissional possa permanecer alheia e silente para a nobreza dos serviços propostos pela entidade chamada a exemplo.
Não creio que a OAB – defensora a toda hora e a todo o momento dos direitos humanos, dos fracos e dos menos favorecidos – possa se opor à prestação de serviços jurídicos gratuitos.
O que se pretende, como dito, é dar ao advogado uma disciplina para os serviços desta natureza, permitindo seu exercício seguro e dentro de parâmetros previamente conhecidos e estipulados pelo órgão de classe, sem embargo de uma detida reflexão a respeito da extensão do seu exercício (consultoria e/ou postulação judicial) e do destinatário pessoa física, sabidamente dever constitucional que compete ao Estado (arts. 5º, inciso LXXIV; e 134, CF).
OS TEMORES (INFUNDADOS) DA PRÁTICA PRO BONO
- Publicidade imoderada – O receio que recai sobre a publicidade imoderada da Advocacia, ainda que na modalidade pro bono, já encontra regulamentação no Provimento nº 94/2000, do Conselho Federal da OAB.
- Aviltamento da profissão – Quando falamos em aviltamento da profissão logo vem à mente o valor dos honorários. Não somos capazes de perceber que o aviltamento da profissão também pode encontrar espaço justamente em nossa recusa em aperfeiçoar nossos valores de solidariedade. Portanto, não creio que neste ambiente de solidariedade da advocacia pro bono haja ameaça à profissão.
- Concorrência desleal – O regulamento certamente trará mecanismos de controle e de disciplina da atividade, vedando ao advogado práticas desleais.
- Captação de clientela e promoção pessoal – O regulamento certamente também ordenará o modo da prática pro bono e saberá tratar o tema dentro do primado maior da discrição e moderação do exercício da Advocacia. O Ilustre Advogado e Professor Miguel Reale Junior, ao defender a advocacia pro bono, observa que “vetar a advocacia solidária com o receio de que algum tipo de cooptação venha a ocorrer é o mesmo que fechar a Bolsa de Valores por causa do temor de uma fraude; ou acabar com o casamento porque ele também pode gerar o adultério”.2
CONCLUSÃO
Nós, advogados, temos um grande desafio: ou colaboramos para o início de uma nova era na formação humanista e solidária do advogado, ou adotamos uma atitude passiva, esperando que o advogado exerça a advocacia pro bono e, eventualmente denunciado na OAB pela prática de condutas violadoras do Estatuto e do Código de Ética e Disciplina, venha a ser submetido a um processo de representação.
Não me sinto confortável para eleger a passividade. Desejo ser um dos protagonistas desta ação.
Minha convicção é a de que podemos e devemos prestar, mais do que uma colaboração, um serviço à justiça. Mais do que isto, se lançarmos um olhar para, e sobre, o futuro, a prática poderá deixar um legado para os advogados iniciantes.
A advocacia pro bono certamente contribuirá para a melhor formação do jovem advogado que poderá tê-la, ainda, como diferencial competitivo em seu currículo.
Neste sentido, invoco reflexão do Jurista José Renato Nalini:
A juventude pode suprir esta falta e realizar um trabalho meritório para ampliar o rol dos cidadãos e para fazer com que o Direito não seja promessa vã, mas realidade tangível. Só o entusiasmo do jovem universitário se comoverá com esse discurso que já não sensibiliza o coração empedernido de quem raciocina por estímulo de cifrões.3
Neste posicionamento, concluo acreditando que estaremos colaborando para uma sociedade mais justa e democrática reforçando nossos princípios éticos e de solidariedade, valores tão nobres da Advocacia, caros à nossa profissão, porém, tão igualmente ignorados na atualidade. Na reflexão de José Renato Nalini:
Cada qual precisa se colocar no lugar do outro, sobretudo no outro excluído, despossuído, angustiado e necessitado de cuidados. Abandonando-se a conduta egoística, ainda que imbuída de certa ética, mas uma ética individual, poder-se-á caminhar para uma ética de responsabilidade solidária. Impregnando-se de responsabilidade solidária, adquirir-se-á a certeza de é possível construir um mundo melhor do que este.4
PAULO AFONSO DA MOTTA RIBEIRO é Advogado e Presidente da Associação Paraná Pro Bono ( artigo originalmente escrito em 2012).
NOTAS
1 In: Jornal da OAB-PR, nov. 2002.
2 Disponível em <www.uol.com.br/aprendiz/ colunas>.
3 In: Ética geral e profissional. 5. ed. São Paulo: RT, p. 302.
4 Op. cit., p. 506.